segunda-feira, 13 de outubro de 2014

(Conto #68) Anjos mortos não riscam bicicletas

   A bicicleta andava no ritmo tenso do seu pedalar. Estava ele incomodado com a vida, com a dor de cabeça, com o latejar de sua vista, com o pulmão pesado do forte tabaco e com o engasgo cíclico de engranagens empenadas e mal lubrificadas da sua bicicleta. Malditos filhos que a pegavam nos dias de sua folga e a levavam para lugares incógnitos unicamente para estragá-la, empoeirar seus mecanismos, riscar a tinta evanescida de sua lataria.
   Imagine ele, andando agora na segunda pela manhã, comprimentando o respeitável vizinho e o guarda de trânsito habitual com aquela velha geringonça rangente de ferrugem. Sentimento de ódio e vergonha despontavam. Sabia ser ele o melhor eletricista da repartição, aquele que sempre resolvia os problemas de forma definitiva e não ficava coçando a cabeça e consultando manuais cheios de jargões técnicos e inseticida para traças. Odiava o cheiro de manuais, tanto quanto de pessoas que coçavam a cabeça com um problema. Ele era prático, punha a mão na massa, resolvia. Poucos conheciam seu talento, lamentava ele na bicicleta que falseava o pedal. Súbito, para piorar seu humor, uma batida brusca em um buraco que o fez sentir dores em sua coluna lombar. Praguejou em murmúrios, rangendo seus dentes gastos. "
   "O que eu faço da minha vida ninguém tem nada com isso". Admitia para sí que não era o mais assíduo do departamento, que faltava com horários e obrigações, mas logo escutava uma voz interior  que o tornava rancoroso e o fazia lembrar de quão idiotas eram os outros, verdadeiros puxa-sacos sanguessugas que nada mais faziam que adular o chefe caxias, que por sinal era outro lambe-botas de seus superiores. 
   Faltou-lhe fôlego por um instante. Teve que parar por um momento e tossir, espectoração melada e profunda. Mesmo o caminho sendo  plano, aquela bicicleta e seu som estridente, o sol já alto, o calor, os pensamentos girando, um tormento, a sede, castigo. O cheiro de corpo emanava do paletó de seu terno, envergonhou-se mais e preocupou-se em chamar a atenção, mas não muito. "Um bom sabão e uma pia dão um jeito nisso, ninguém vai perceber com um pouco de água ensaboada na nuca e axilas." 

Quando estava assim, nesse estado deplorável, subia no pequeno quartinho do reservaório da caixa d'água, um lugar que cheirava a cimento e merda de pombos, e, fazendo um travesseiro com restos de sacos de papel, dormia um sono rústico e desolado, típico daqueles que varam noites de jogatina, bebidas, fumo e gargalhadas enebriantes. Apenas um menino, pequeno aprendiz assustado e franzino, sabia de seu paradeiro, e sob pena de represálias atrozes não o dedava, ao contrário servia de vigia e de bode-espiatório para suas escapadas e malandragens. 
Era nesse reservatório que estava focado enquanto pedalava sua bicicleta quebrada. Enquanto praguejava as marchas que escapavam sozinhas no câmbio descalibrado, pensou num consolo ingênuo que a distância pra chegar já era pouca. Já via o portão da firma logo ali na frente. Tentou focar sua concentração no exercício, aquela roupa abafada, só precisava dormir por quinze minutos.
Deu uma piscada forte, depois uma outra ainda maior, e foi então que abruptamente sua bicicleta estancou, o que fez com que ficasse alerta num sobressalto. Um homem alto e de constituição sólida, pesando cerca de 120 quilos estava na frente do seu caminho, segurando o guidão da sua bicicleta. O eletricista pôs os pés no chão imediatamente e pensou em praguejar, mas optou por um sorriso amarelo, de desculpas, até mesmo porque precisava entender o que se passava, qual era a situação.
"Amigo, você deve olhar por onde anda, da próxima vez pode se machucar. E tem minha bicicleta, mas não se preocupe acho que não amassou nada..."
   O homem tinha uma cara fechada e não parecia querer fazer amigos. Também notou que ele não estava só mas em um bando de brutamentes mal-encarados. Eles formaram um círculo em volta de sua bicicleta, e então o homem que segurava o guidão empurro-o de tal forma que fez com que o eletricista caísse, sujando todo seu terno com lama e poeira. Tentou o pobre traste levantar-se, quando tomou o primeiro tapa em sua orelha que o fez cair novamente sentado. Então vieram pontapés, murros e cotoveladas, e as estrelas começaram a girar sobre sua cabeça. Então alguém jogou um balde de água nele, algo sujo para que não perdesse a consciência, e levandando-o pela lapela, fez com que ficasse suspendido, um dos pés sem sapato, e então o homem, com voz arrastada como se tivesse retendo toda a sua violência entre os dentes declarou:
   "Que espécie de escória é você seu doente, estupra a própria filha?", e numa cabeçada certeira em seu nariz apagou.
    Então escutou batidas que, cada vez mais fortes pareciam querer lhe arrancar os tímpanos. O rosto coberto de um suor colado daquele que verte do álcool pelos poros, um hálito seco da desidratação da bebida e do chorume oleoso do tabaco, a gengiva dolorida e olhos arenosos que muito se esforçam para se esbugalhar entre as pálpebras inchadas. Reconheceu o meninoaprendiz batendo do lado de fora da parede de latão do reservatório de água:
   -Seu Laércio, acorda seu Laércio o sol está alto, o senhor vai cozinhar aí dentro.
   -Alguém procurou por mim?
   -O capataz seu Laércio, mas ele não está bravo com o senhor, está preocupado. Parece que a polícia está aí na frente, querem te contar que sua filha sumida foi achada num matagal, assassinada. O senhor está bem seu Laércio? Está triste?
   - Que, hã, claro moleque, é uma coisa muito ruim o que você está contando. Estou triste sim. Me ajude a descer daqui sem que ninguém veja.
   Então torpe e confuso, sujo de rolar no pequeno sono atribulado, desceu as escadas e foi ter com o capataz, que estava com a polícia e com diversos funcionários, operários fortes com ferramentas pesadas em suas mãos. 
   Então o capataz consternado pela situação apontou o delegado de polícia:
   -Laércio, o homem da lei tem coisas para te contar, Genival, traz um trago pro Laércio! Pode ser cachaça?
   -Se tiver conhaque eu prefiro seu Benedito.
   -Alguém vai lá comprar um conhaque pro Laércio. Esse homem é um lutador e precisa de ajuda aqui.
Então coisas foram esclarecidas pelo delegado, e Laércio mordeu os lábios, tremeu, chorou. Mas se preocupou com uma eventual investigação: 
   -Mas o senhor delegado escutou alguma coisa, desconfia de alguém?
   -Estão falando dos ciganos, que montaram um acampamento na saída da cidade.- respondeu o delegado. 
   -Malditos ciganos! Eu devia imaginar!-disse Laércio, visivelmente transtornado.
   -Não se preocupe Laércio, o senhor vai ter justiça. Pessoal, quem vai com a gente no multirão?
   Formou-se assim o comitê de linchamento.
   Laércio, cansado demais para acompanhar toda aquela agitação enconstou em um canto na sala do capataz e dormiu sentado de roncar. Alguns operários, vendo a piedosa cena se enterneceram do homem que tanto sofria e fizeram um rateio para angariar dinheiro para o velório da criança. Então alguém acordou Laércio, deu-lhe uma xícara de café quente bem forte e anunciou o envelope como o arrecadado.
   -Assim a menina vai ter um enterro digno!
   Ele tomou um gole do café, suspirou profundo e acenou com um sorriso esforçado. Então pensou:
   "e  me livro dessa bicicleta velha e compro uma que funcione." Esse pensamento reconfortou-lhe, e para a tranquilidade dos presentes, conseguiu dar um sorriso verdadeiro, sincero, feliz.

Questionador com café


   Hoje tomei meu café da manhã fraco, doce, questionador. Fraco e doce eram qualidades do café. Questionador era a de quem o estava bebendo.
   A sensação de estar questionando sempre me vem quando sonho com algo esquisito e diferente, aquele tipo de coisa que no sonho parecia ser certa e lógica, mas que quando acordo pareço discordar como se nada fizesse mais sentido.
   É como ver algo belo sem os óculos fortes para miopia, e descobrir feiura em seus detalhes quando se coloca o óculos novamente.
   Mas nessa minha analogia, ainda não descobri qual é o estado em que se vê tudo focado do jeito certinho, o de vigília ou o de sonho.
   Por isso a sensação de questionador ao tomar meu fraco café adocicado nessa manhã.