segunda-feira, 28 de março de 2016

Demonstração macabra de amor

Era sábado à tarde, e todos os garotos que considerava meus amigos saíram para alguma festa e não me convidaram. Pus uma roupa bacana e saí de casa rumo a lugar nenhum, despedindo-me da minha mãe sem contar a verdade, afinal de contas não queria deixá-la preocupada.
Dei algumas voltas nos quarteirões próximos, observando outros grupos de garotos que tramavam seus passeios noturnos, tomando a devida precaução de não me deixar ser visto, sobre risco de arrumar confusão, coisa de cidade pequena.
Quando percebi que alguém olhava pra mim, saía de lado, fingindo distrair-me com uma pedra, que chutava por trinta ou quarenta metros, até uma esquina furtiva.
A tarde já caía em noite quando a vi me observando: é algo estranho para um observador por si só ser o observado, mas havia algo além.
A menina trajava farrapos acinzentados e tinha grandes olhos melancólicos que me acompanhavam desde lá sabe-se quando.
Aparentemente evitava minha percepção de um ser observado até aquele momento, quando resolveu revelar-se para mim com sua penetrante fixação. Com braços relaxados e roupas muito gastas, mas não sujas, manteve-se imóvel mesmo quando cheguei a um braço de distância com o punho levantado ameaçando espancá-la pelo atrevimento.
Percebendo que meu blefe fora em vão e desmascarado como um covarde sem condições de nem ao menos enxotar uma menina enxerida, baixei os olhos e ameacei ir embora. Ela então levantou uma das mãos e tocou em meu ombro, dizendo, “Espere, quero lhe mostrar uma coisa!”.
Curioso, seguia por mais ou menos 200 metros ladeira acima até o cemitério da Paz, no topo do morro. Mas não estávamos na rua que dava para o portão principal, mas em uma vicinal onde hoje fica o velório municipal. Ela fez sinal para que eu pulasse o muro, que naquela parte é baixo.
Assustado pelo pedido, mas curioso e incapacitado de fazer feio perante uma menina, pulei a parede de um metro e setenta, não antes de ralar um pouco a barriga. Quando olhei para trás, vi que ela me seguia com aparente tranquilidade, talvez porque já fizesse isso mais vezes. Estranho, pensei, pois era vizinha de um quarteirão do cemitério e não lembro de tê-la visto antes.
Ela me guiou até um túmulo de mármore cheio de fotos antigas e contemporâneas, depois parou em posição de sentido equivalente a quando a vi pela primeira vez. Já era noite, mas as luzes dos postes das ruas próximas iluminavam bem o ambiente.
Ficamos assim não sei quanto tempo, uma sensação de horas, mas creio que não tenha mais que cinco minutos (tanto tempo assim?).
Daí ela me contou que aquele era o túmulo da família dela, caso ela tivesse uma família.
- Meu nome é Nora. Só Nora porque não fui registrada, e ninguém cuidou de mim. Mas está vendo aquela mulher bonita ali? Ao lado daquele gordo de bigode? É a minha mãe. E está vendo aquele moço bonito ali escrito padre na frente do nome? É o meu pai.
-Mas como você sabe?
-Não vou te contar. Mas eu sei.
-Não entendo.
-Não precisa. Basta saber que eles estão todos juntos em algum lugar, minha família, e eu vou morrer como vivi, sozinha. E disse isso com lágrimas nos olhos.
-Desculpa.
-Pelo quê? Não tem que me consolar. Tem que me ajudar.
-Como
-Me ajude a entrar lá. Deitar em um dos espaços, e dormir com eles. Daí fico com a minha família para sempre.
-Você está louca?
Eu olhei bem pra ela, e parecia bem determinada.
-Não.
Ficamos em silêncio. Talvez ela estivesse certa, vi isso num filme uma vez.
-E o que quer que eu faça? Perguntei, empenhado em cooperar.
-Me ajude a abrir o buraco de uma das lápides e me feche lá, mas preciso que me prometa uma coisa...
-O quê?
-Que não me deixará desistir. Mesmo que eu insista. Muito.
-É difícil. Tenho coração mole pra súplicas. (lógico que não falei assim, mas é como me lembro.)
-Eu confio em você. Pode fazer isso por mim?
-Vamos abrir. Disse isso e forcei a portinhola que dava para o vão cheio de lajes preenchidas com cimento.
As mais novas estavam duras, mas as mais baixas soltavam com o cutucão de uma vareta que encontrei caída de uma árvore. Não nos incomodamos em saber qual era a gaveta que de fato guardava sua mãe ou seu pai, afinal estar com a família era o fundamental da nossa missão.
Enquanto me concentrei em retirar metade da parede de tijolos em ruínas revelando um esqueleto com cheiro característico tumular, Nora apareceu na abertura com um papelão que ela havia arrastado sei lá de onde com cimento fresco de alguma obra do cemitério. Chamei-a para dentro e mostrei o vão da gaveta que havia aberto com certo orgulho. Ela olhou-me com seus tristes olhos grandes nariz a nariz, e nessa eternidade pude sentir algo estranho que mais velho rotulei de amor. Ela me abraçou e deu um beijo no meu rosto, e eu me virei um pouco envergonhado falando:
- Vamos.
-Sim. Obrigada!
-Rápido, antes que venha alguém!
Ela se enfiou na gaveta, praticamente de conchinha com o irreconhecível habitante funesto daquele espaço.
Comecei então meu trabalho, juntando pouco a pouco os tijolos e os unindo com o cimento que Nora havia arranjado, com os olhos dela sempre me fitando, melancólicos mas satisfeitos, como se esperasse isso há tempos.
Faltando seu busto e cabeça para terminar, ela rompeu o silêncio:
-Você é o meu anjo, sabia?
-Não sou não. E falei com os olhos marejados, gaguejando.
-Por quê?
-Porque se eu fosse seu anjo, te tirava daí e te levava embora.
Novo silêncio, novamente Nora o quebrou:
-Agradeço por compreender.
Fiz sim com a cabeça, e continuei com a obra. As horas foram se passando e os tijolos foram novamente empilhados. Faltava só cobrir sua cabeça.
Foi então que tive que provar meu heroísmo e comprometimento, frente ao perigo.
Nora começou a entrar em desespero, e sentir claustrofobia. Começou a respirar rápido e gemeu baixinho, desesperada:
-Por favor, para, me tira daqui, eu quero sair, eu não quero mais.
Fiquei impassível, escondendo uma lágrima do olho.
Ela começou então a se debater e gritar, atrapalhando meu trabalho e ameaçando acordar toda a vizinhança.
Repentinamente, escutei passos ao longe lá fora, e vi o rastro de uma lanterna que vinha de longe, mas podia chegar antes do serviço acabar. Nora escutou o som de pessoas se aproximando do lado externo e gritou:
-Aqui, aqui, socorro, ele quer me matar!
Num relance de agilidade, a adrenalina fez com que eu pensasse rápido e, segurando um tijolo com a mão direita, desferi-lhe dois ou três golpes em sua cabeça, deixando-a inconsciente.
Minutos depois, o coveiro passou através da ruazinha do túmulo que nos encontrávamos, confuso por não achar a origem dos barulhos que o acordara. Pouco depois, foi embora.
Em quinze minutos, terminei a última fenda que separava Nora e sua família do mundo externo. Linda, não pude ver seus olhos uma última vez graças ao sangue empapado que coagulara em sua face, fazendo uma máscara mortuária com seu cabelo negro.
Beijei minha mão e toquei sua testa, para depois fechar o último tijolo, com um nó na garganta.
Os primeiros raios de sol da manhã despontavam quando fechei a portinhola do túmulo, cansado, mas com senso de dever cumprido. Não sei onde a família de Nora se encontra agora, mas com certeza ela está com eles.
-o-
Às vezes sonho com Nora, e fantasio seu espírito vindo até mim a noite agradecer por minha ajuda. Outras vezes tenho alguns pesadelos malucos, sugerindo que ela jamais quis de fato ser enterrada viva. Mas eu sei que isso é bobagem, porque eu sei como é a solidão, e sei como ela castiga e faz doer por dentro. Às vezes penso que seria bom se eu tivesse alguma mão amiga que poderia me amparar como amparei Nora.
Mas, ao que tudo indica, eu não tenho amigos. Nora era minha única amiga. Então, penso eu, no final, eu fiquei... feliz. Afinal, felicidade se compartilha com quem se ama, e eu a compartilhei cada momento daquela noite com Nora.

sexta-feira, 11 de março de 2016

Todas as autoridades públicas e ex-integrantes de cargos eletivos deveriam ter foro privilegiado, dado à importância simbólica ao país. E pelo mesmo motivo, se condenados, pena em quádruplo.

quarta-feira, 9 de março de 2016

Diversão com saco de moedas.

Isto é muito conhecido. O rabo do cavalo abana as moscas mas não as mata, só as afasta.
O tosador corta a lã do carneiro, que só faz crescer de novo. Os políticos roubam, são pegos e se afastam dos ses cargos, para depois os assumirem de novo, de outro partido.

A vida é assim. Não dá pra mudar. Bobo é quem acha que muda. Quanto a mim, me divirto com o que tenho, porque eu penso que apesar de imutável, do ponto de vista individual ela é curta, e temos o dever em testarmos suas possibilidades enquanto dela tivermos um naco.

Vejamos. Um dia eu estava almoçando em frente à Assembléia Legislativa, quando escutei despretensiosamente o papo da mesa do lado. Era um político e um assessor, falando sobre um escândalo em que o primeiro estava envolvido. O assessor tentava acalmá-lo, dizendo que isso tudo era uma grande tormenta, e que logo tudo passava. O político, visivelmente sensibilizado, fazia muxoxo de criança com a boquinha, dizendo:
-Você acha?
O assessor fez que sim com a cabeça e o abraçou, dando tapinhas em suas costas, acalentando o homem angustiado:
-Calma, vai passar. Não existe pessoa mais honesta do que o senhor nesse estado de São Paulo. E todo mundo sabe disso.
O homenzarrão de sessenta anos de terno creme, cabelos brancos compridos penteados de forma que cobrisse sua calvície, olhou-o com olhos de criança e apenas assentiu com a cabeça.
-Obrigado, meu amigo. São dessas palavras que eu preciso nesse momento de ataque dos inimigos.
O assessor levantou-se e pediu cigarros para o caixa, que disse:
-O senhor vai encontrá-los na banca no fim do quarteirão. Quer que eu peça para alguém ir buscar?
-Não. Vou eu mesmo. Assim respiro um pouco. Deputado, o senhor se importa?
O gordo emérito chacoalha vagarosamente a cabeça, com pesar, e por fim põe as duas mãos na mesa num esforço para levantar-se de sua cadeira. Durante o processo diz:
-Pode ir Moreira, que eu aproveito e vou até o banheiro.
O assessor saiu sem olhar para trás, demonstrando cansaço por esses dias temerosos de pagar o silêncio de testemunhas, intimidar discidentes, propinar a mídia para notícias obsequiosas em favor do seu patrão.
Quanto a mim, dei mais uma garfada no meu bife mal passado, e olhei para a minha direita na mesa, onde eu tinha um saco de quase 500 gramas em moedas de troco baixo que eu iria usar para pagar a conta da refeição. Mas daí tive uma idéia incrível, e pensei poder utilizá-las uma vez mais antes de passar elas para a frente.
Tão logo o Deputado entrou no banheiro, atravessando a porta de mola, peguei meu saco de moedas e entrei atrás dele. Ele estava tentando achar seu pinto naquela confusão obesa de abrir zíperes e abaixar a calça até o joelho e posicionar-se correto no mictório. A marmota errou a mira na porcelana, urinando todo o chão, com respingos repulsivos escorrendo na própria perna. O pior da cena era sua bunda branca e flácida de fora, com pelos esparsos e espinhas que mais pareciam pústulas.
Diziam os jornais que ele pagava pensão para uma modelo de dezenove anos. Nojento. Não pude mais perder tempo. Girando o saco de moedas no ar, acertei um golpe em sua nuca, escutando um crack e então o baque do homenzarrão caindo sobreo próprio mijo, não antes de bater o queijo no mictório e partí-lo em fragmentos. No chão, desferia vários golpes com o saco, sentindo seu corpo tremular em ondas de banha. Sua cabeça fazia um barulho oco a cada pancada acertada, e o sangue formou uma poça negra no chão, levantando no ar seu cheiro característico junto com a urina e os produtos baratos de limpeza. Já com o braço dolorido de tanta porrada, ofegante encostei as costas na parede de azulejos brancos encardidos e procurei no bolso um cigarro. Dei dois tragos longos, e então abri a torneira da pia, molhei as mãos e arrumei o cabelo com a humidade. Então apaguei o cigarro na orelha do cadáver de bruços, observando o paletó dpuxado para um lado, sua camisa para o outro, deixando as costas peludas expostas como sua grande bunda branca. O porcalhão tinha se cagado inteiro, esse nojento. Nem pra morrer com dignidade prestava. Virei-me e abri a porta rotatória, e fui até o caixa com meu saquinho de moedas pingando sangue.
Lá estava o assessor e o dono do estabelecimento, que me olhavam estupefados.Despejei as moedas no balcão, e disse que não precisava contar, que o dinheiro dava para pagar o almoço de quinze reais.
-Creio ter uns dezessete reais em moeda, pode ficar com o troco - eu disse.
O assessor, ainda não recuperado da situação toda, falou:
-Tem certeza que ele está morto? Não podemos correr risco algum.
-Ah, meu amigo, ele está bem mortinho, posso lhe garantir. - eu disse, dando-lhe um tapinha cortês em seu ombro e pegando meu rumo para o escritório.
Após andar alguns quarteirões, escutei ao longe o barulho de diversas sirenes. Polícia, ambulância, o caralho a quatro. Diziam no noticiário que não fora um mero assalto, que aquilo era obra de ativistas fanáticos da oposição. Uma manifestação em comoção ao homem ilibado que tinha sido covardemente assassinado fora marcado na Paulista. Seu partido, que estava sendo investigado, agora tinha uma linha de defesa: estava salvo. Agora eles tinham um mártir. Quanto a mim, foda-se. Não gosto de política. nem de futebol, tão pouco religião ou de analizar o caráter da humanidade.
Eu só quero é ver o oco.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

O que os outros pensam

José conversava na portaria com Pedro. Ele tinha acabado de chegar do trabalho, e foi jogar conversa fora com o zelador. Os dois falavam sobre política e policiais corruptos, enfim, coisas que estavam nas páginas do jornal do dia, quando Pedro, que era o zelador do prédio, disse que a cobertura da ala norte do prédio estava vaga, e disse que o proprietário iria se mudar do país e estava vendendo a preço de barganha. José então disse:
-Mas sério? Meu sonho era morar naquela cobertura, nem que fosse por um dia. Deve ter uma ótima vista!
-Excelente, dá pra ver até o parque de lá, - animou-se João - e ele está fazendo qualquer negócio. Se você oferecer o seu apartamento de entrada e financiar o resto ele iria adorar, porque seria bem mais fácil vender o seu. Nesses tempos de crise…
-Nem me fale. Mas eu acho que tenho fôlego pra um pequeno financiamento. Afinal de contas sou solteiro, aquela cobertura é o sonho da minha vida inteira e... ei, espera um pouquinho, aquela lá que vem vindo não é a dra. Maria?
Maria vinha da rua que dava para a farmácia. Estava bem arrumada, de cabelo feito e muito bem maquiada, pensou José.  Para uma mulher que pouco se cuidava, parecia que as coisas iam bem para ela. Ela tinha terminado um noivado a pouco mais de seis anos, e durante esse tempo pouco se importava consigo mesma, afundando-se de cabeça no trabalho e no conselho do prédio, para infelicidade dos moradores.
-Isso é um ótimo sinal. - pensou José - Posso aproveitar para comentar algo sobre sua aparência, e talvez ela se esqueça das mazelas passadas.
Apesar de vizinhos, eles não se viam há três anos. Isso acontecia pelos horários diferentes, José se justificava. Ele só não sabia qual seria a postura dela em relação a ele naquele momento, porque das últimas vezes que se viram, tiveram alguns desentendimentos devido a assuntos do dia a dia no prédio. Ele já fora síndico, e ela uma conselheira que criticou impiedosamente sua gestão. E ela engoliu alguns desaforos por deslizes que ela próprio havia cometido. José não tinha nada contra ela e nunca lhe guardou mágoa pelos seus destratos, mas sabia que estava lidando com uma pessoa difícil.
Maria cruzou o portão. Os dois homens pararam de conversar, e José tentou ser solícito falando primeiro:
-Boa tarde Maria!
Maria o olhou com um sorriso no rosto, mas com aquele olhar que ele já conhecia de outros carnavais.
-Você envelheceu muito durante esse tempo.
José deu um sorriso amarelo. Ficou com aquele elogio que tinha guardado para ela entalado na garganta, afinal ela o havia desarmado. Apesar de bem mais velha do que ele, talvez cinco anos, ele não estava predisposto a cair na defensiva.
-O tempo passou Maria. - recuou José.
-Mas você envelheceu demais.
-Deve ser o peso da responsabilidade. Ou talvez porque eu emagreci.
-É, responsabilidade costuma deixar marca de idade. - Maria disse isso olhando para a barriga protuberante de José, que quanto mais tentava encolhê-la, mais se ressaltava na camisa cor de pêssego-derrota.
Ela deu um novo sorriso artificial e virou-se para abrir a porta do prédio e seguir seu caminho. João e José ficaram quietos por um tempo, e depois continuaram a conversa, mas José estava com aquilo na cabeça. Que tipo de pessoa faria um comentário desses? Qual seria a intenção pura de machucar a auto-estima de alguém que nada lhe fizera?
João, percebendo que José estava pensativo, parou de comentar seu futebol ou algo parecido e se calou por um instante. Então disse:
-Ouça, meu amigo: Mário Quintana uma vez disse que não existiam pessoas boas ou más no mundo. Apenas pessoas que desejam o bem das outras. E tem também aquelas que desejam o mal. -disse isso apontando com a cabeça para a porta do prédio, e depois os dois deram um sorriso encabulado, cúmplices da humilhação imposta.
José então ficou quieto, pensando na frase. Vendo que só o tempo resolveria aquela situação embaraçosa, João pôs a mão no ombro do rapaz e o consolou:
-Você fez bem em não responder para aquela recalcada.
José concordou e deu boa tarde para o zelador. Subiu até seu andar e entrou no seu apartamento. Tirou os sapatos, ligou o ventilador, acendeu a luz da sala. Entrou no banheiro e foi dar uma olhada no espelho. Mirando-se bem, viu rugas que não vira antes no seu rosto, pés de galinha e poros abertos, além dos cravos e espinhas. Percebeu acima da testa uma entrada no seu couro cabeludo muito maior do que achava que era. E os cabelos grisalhos então? Já devia ter mais de 10 fios! A coisa estava feia. Arrancou sua roupa e se olhou no espelho. Estava gordo e mole. Tudo era só flacidez e pelancas. Não tinha nem a metade da beleza que costumava ter antigamente.
Naquela noite, José não dormiu direito. Ficou pensando nas coisas que a megera lhe falara. Parecia que seu rosto se repuxava durante a noite, e ele não conseguia dormir se imaginando carcomido por dentro.
Ele acordou na outra manhã decidido em não pensar em mais nada, a não ser na construção de uma pessoa melhor. qSe inscreveu em uma academia, contratou um personal trainer, foi até um dermatologista e a uma nutricionista. Começou um programa de natação, comia certinho e fazia seus treinos até rasgar e definir todos seus músculos. Tratou seu cabelo com cremes especiais, a pele do seu rosto e pescoço com susbtâncias que melhoravam o colágeno e o liberavam dos radicais livres. Fez limpeza completa de pele em um spa muito bem recomendado pelos profissionais da área. Em seis meses ele se olhou no espelho e sorriu, vendo um corpo perfeito, com um rosto quase sem marcas de idades e um cabelo ondulando ao vento. Ficara muito contente com o resultado de todo seu esforço e boa disposição em mudar para melhor. Então disse em voz alta, para si mesmo, com a intenção de que as paredes do seu apartamento testemunhassem o nascimento do mais novo homem:
-Agora eu, José Pereira de Aragão, recuperei a minha auto-estima!
José então começou a passear na frente do seu prédio em horários distintos. Ele queria de alguma forma encontrar Maria, a sua Nêmesis que o deixara tão aflito durante tanto tempo, e poder mostrá-la pessoalmente como ele, José, foi capaz de dar a volta por cima.
Um belo dia, após  José tornou a encontrar o zelador João e eles começaram a falar sobre amenidades das páginas do jornal daquele dia, quando ele viu Maria vindo de longe. Ele respirou fundo e estufou o peito, pensando em elogiá-la por sua aparência e saúde. Assim ela não teria outra alternativa, senão dãr o braço a torcer e fazer algum comentário positivo para ele.
Assim que ela cruzou o portão, José disse, teatral:
-Bom dia!
Maria o olhou com um sorriso no rosto, mas com aquele olhar que ele já conhecia de outros carnavaisa aquele mesmo que o assustava tanto. Sem delongas ela cuspiu:
-Bom mesmo. Comprei aquela sua cobertura dos sonhos.
-Como assim, comprou? - Arruinou-se José.
Com um sorriso artificial no rosto, afinal, Maria não era do tipo de pessoa que conseguia fingir uma expressão facial humana por muito tempo, ela se justificou, destilando seu sarcasmo vil:
-Estamos em tempos de crise, então me vendeu baratinho! Boa tarde para vocês.
-Boa tarde, Maria. - chorou José, procurando um buraco para enterrar a própria cabeça.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Amigo é pra essas coisas

José convidou Breno para uma pizza em sua casa. Ele morava em uma cobertura próximo ao centro de Belo Horizonte e gostava de compartilhar seu tempo de lazer com amigos. Breno trouxe um vinho como manda a etiqueta, mas aceitou cerveja gelada, coisa que gostava, principalmente num dia de calor como aquele.
-Breno, fiquei sabendo da sua viagem em Berlin! Parabéns, para um homem que nunca saiu do Brasil você anda bem arrojado.
-Sim, obrigado. Ando estudando alemão faz um tempo. Estou vendendo minhas coisas, vou me mudar para lá.
-Breno. Mais uma das suas eim? Quem te convenceu disso?
Breno estava tenso. Sabia que José seria impiedoso.
-Alguns amigos com quem conversei. Eles me disseram que seria ótimo morar na Europa, que as oportunidades são incriveis, além das praças, museus, as garotas...
-As garotas, Breno, as garotas!
José ria com sarcasmo enquanto levantou a cerveja fazendo um gesto de brinde.
-Breno, - continuou - A Alemanhã não é um lugar para qualquer um não meu amigo. Lá a competição é severa. O mercado de trabalho lá é acirrado, e não tem lugar pra gente despreparada. Você tem faculdade em que mesmo?
-Sou técnico em...
-Ah, meu amigo, técnico, na Alemanha? Achei que estivesse se formado numa faculdade meia boca, mas técnico? Sem chance. Eles te engoliriam lá.
-Olha José, eu acho que quem não arrisca, não petisca, e eu quero tentar mesmo assim. Afinal de contas, já vendi minhas coisas, e não tem nada que me segura aqui...
-Mas porque não falou comigo Breno, que pressa é essa? Você acha mesmo que é assim, ir, arrumar um lugarzinho, procurar um emprego e pronto acabou, já está estável, falando alemão, cheio de loiras te ligando para andar de bicicleta nos parques?
José fez um gesto de negativa com a cabeça. Formou-se um silêncio sepulcral, e José olhava para o fundo do seu copo, a cerveja já quente e sem espuma.
José continuou o seu ritual cáustico:
-Olha, não sei quem é que falou com você sobre esse papo de ir para a Alemanhã, mas não tá nada certo. Eles estão cheios de refugiados sírios lá, daqui a pouco o terrorismo vai virar uma paranóia na região e rapidinho você vai para a rua da amargura, se não acabar sendo deportado. E vou dizer, se marcar, seria ótimo para você, porque lá, desempregado, com aquele inverno rigoroso. Você já esteve na neve?
-Não - disse Breno desolado
-Ah, a neve só é linda nos filmes e nas casas dos ricos! Para quem não tem emprego, dinheiro nem qualificação, e ainda por cima é brasileiro, daí a coisa muda mesmo de figura.
Breno não suportava aquela ladainha toda. Deixou seu copo na mesa, agradeceu o convite e falou que tinha de ir embora. Por educação, lembrou-se de que tinha que buscar o cachorro da mãe no veterinário.
-Mas ainda tem pizza pra fazer meu amigo, não quer ficar mais quinze minutinhos?
-Não obrigdo, já vou.
-Pode ir então, Breno. Mas pensa no que eu disse, ok?
Breno foi embora, e de fato pensou. Pensou que José, era um canalha. Herdara a loja do seu pai e nunca precisou de fato pegar no pesado. Tinha sorte de ser um cara estudado e próspero, enquanto ele teve de ralar de garçom para pagar o colegial técnico. O cara conhecia o mundo inteiro, ia para as Bahamas, Pequim, Nova Iorque, enquanto ele, que queria um pouco daquela vida de sonhos, era escurraçado pelo amigo. Inveja, isso é o que era.
Virando uma esquina, Breno viu um mendigo pedindo comida. Viu uma garrafa de cachaça faltando dois dedos, e viu meninos atirando pedras nele, até que acertaram a garrafa. Viu a cara do homem, que tinha fome, e agora não tinha mais sua distração para aquela vida de merda. Breno enfiou as mãos no bolso, mas não tinha troco, acabou indo embora dando apenas um sorriso amarelo para o morador de rua. Da outra vez que passar deixo dinheiro, pensou. E isso lhe fez mudar seu raciocínio quanto ao que dizia José. Ele podia ser um almofadinha mala sem alça, mas era seu amigo de infância. O que José queria era alertá-lo sobre os perigos, deixar claro que as coisas eram difíceis lá fora. Mas ele tinha investido meses no seu alemão! Pensando bem, talvez não tivesse um alemão tão bom assim, e poderia passar um tremendo aperto. Breno voltou para a casa com uma opinião.

Seis meses se passaram quando José parou para tomar café numa padaria, e se surpreendeu com Breno no balcão:
-Breno, faz quanto tempo! Você sumiu! Achei que tivesse ido mesmo.
-Não, eu pensei bem, e resolvi ficar. Morar longe de BH não é pra mim.
-É, uma coisa é certo, meu amigo, você tem que ter coragem pra assumir ma posição. Eu sempre valorizei isso em você. E a oficina, desistiu?
-O Moreira já tinha contratado outro eletrecista. E com essa crise, tenho que dar graças a Deus em conseguir lavar copos aqui.
-Mas, sei lá, não estou vendo felicidade no seu olhar José. Tem certeza que não queria ir?
-Não, estou bem aqui.
-É que sabe, apesar de tudo o que te falei, pra alertar, pra chacoalhar seus ânimos, tem o outro lado. Sempre tem gente que vai, com uma mão na frente e outra atrás e se dá bem...
-José,
-...tem gente que dá a volta por cima, mesmo porque qualquer graninha que guardar lá, é em Euro, cinco vezes mais que o real do Brasil.
-José,
-...e além do mais, pra quem não tem nada a perder como você, o que é que custa arriscar?
-JOSÉ - se exaltou Breno, para espanto do amigo.
-Desculpe, Breno, é que, eu queria te dexar pra cima, você está meios caidão...
-José, me escuta.
-Sim Breno.
Breno olhou bem fundo nos olhos de José, que estava estupefado por todo aquele papelão. Viu que atrás dele limpava o chefe do balcão limpava um copo e observava a conversa, então Breno deu um respiro profundo e meneou a cabeça.
-O que vai querer, José, café puro ou com leite.
-Com leite, por gentileza.
Breno trouxe o copo para ele.
-Açúcar ou adoçante?
-Adoçante, estou de dieta.
-Aqui está.
José tomou seu café com leite silenciosamente. Pôs o dinheiro sobre o balcão, deixando uma generosa gorjeta, afinal sabia que Breno estava duro e precisava de um apoio moral. Então levantou-se e falou, já na porta da padaria.
-Breno eu vou indo então, mas pensa no que eu disse, ok?