quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

O que os outros pensam

José conversava na portaria com Pedro. Ele tinha acabado de chegar do trabalho, e foi jogar conversa fora com o zelador. Os dois falavam sobre política e policiais corruptos, enfim, coisas que estavam nas páginas do jornal do dia, quando Pedro, que era o zelador do prédio, disse que a cobertura da ala norte do prédio estava vaga, e disse que o proprietário iria se mudar do país e estava vendendo a preço de barganha. José então disse:
-Mas sério? Meu sonho era morar naquela cobertura, nem que fosse por um dia. Deve ter uma ótima vista!
-Excelente, dá pra ver até o parque de lá, - animou-se João - e ele está fazendo qualquer negócio. Se você oferecer o seu apartamento de entrada e financiar o resto ele iria adorar, porque seria bem mais fácil vender o seu. Nesses tempos de crise…
-Nem me fale. Mas eu acho que tenho fôlego pra um pequeno financiamento. Afinal de contas sou solteiro, aquela cobertura é o sonho da minha vida inteira e... ei, espera um pouquinho, aquela lá que vem vindo não é a dra. Maria?
Maria vinha da rua que dava para a farmácia. Estava bem arrumada, de cabelo feito e muito bem maquiada, pensou José.  Para uma mulher que pouco se cuidava, parecia que as coisas iam bem para ela. Ela tinha terminado um noivado a pouco mais de seis anos, e durante esse tempo pouco se importava consigo mesma, afundando-se de cabeça no trabalho e no conselho do prédio, para infelicidade dos moradores.
-Isso é um ótimo sinal. - pensou José - Posso aproveitar para comentar algo sobre sua aparência, e talvez ela se esqueça das mazelas passadas.
Apesar de vizinhos, eles não se viam há três anos. Isso acontecia pelos horários diferentes, José se justificava. Ele só não sabia qual seria a postura dela em relação a ele naquele momento, porque das últimas vezes que se viram, tiveram alguns desentendimentos devido a assuntos do dia a dia no prédio. Ele já fora síndico, e ela uma conselheira que criticou impiedosamente sua gestão. E ela engoliu alguns desaforos por deslizes que ela próprio havia cometido. José não tinha nada contra ela e nunca lhe guardou mágoa pelos seus destratos, mas sabia que estava lidando com uma pessoa difícil.
Maria cruzou o portão. Os dois homens pararam de conversar, e José tentou ser solícito falando primeiro:
-Boa tarde Maria!
Maria o olhou com um sorriso no rosto, mas com aquele olhar que ele já conhecia de outros carnavais.
-Você envelheceu muito durante esse tempo.
José deu um sorriso amarelo. Ficou com aquele elogio que tinha guardado para ela entalado na garganta, afinal ela o havia desarmado. Apesar de bem mais velha do que ele, talvez cinco anos, ele não estava predisposto a cair na defensiva.
-O tempo passou Maria. - recuou José.
-Mas você envelheceu demais.
-Deve ser o peso da responsabilidade. Ou talvez porque eu emagreci.
-É, responsabilidade costuma deixar marca de idade. - Maria disse isso olhando para a barriga protuberante de José, que quanto mais tentava encolhê-la, mais se ressaltava na camisa cor de pêssego-derrota.
Ela deu um novo sorriso artificial e virou-se para abrir a porta do prédio e seguir seu caminho. João e José ficaram quietos por um tempo, e depois continuaram a conversa, mas José estava com aquilo na cabeça. Que tipo de pessoa faria um comentário desses? Qual seria a intenção pura de machucar a auto-estima de alguém que nada lhe fizera?
João, percebendo que José estava pensativo, parou de comentar seu futebol ou algo parecido e se calou por um instante. Então disse:
-Ouça, meu amigo: Mário Quintana uma vez disse que não existiam pessoas boas ou más no mundo. Apenas pessoas que desejam o bem das outras. E tem também aquelas que desejam o mal. -disse isso apontando com a cabeça para a porta do prédio, e depois os dois deram um sorriso encabulado, cúmplices da humilhação imposta.
José então ficou quieto, pensando na frase. Vendo que só o tempo resolveria aquela situação embaraçosa, João pôs a mão no ombro do rapaz e o consolou:
-Você fez bem em não responder para aquela recalcada.
José concordou e deu boa tarde para o zelador. Subiu até seu andar e entrou no seu apartamento. Tirou os sapatos, ligou o ventilador, acendeu a luz da sala. Entrou no banheiro e foi dar uma olhada no espelho. Mirando-se bem, viu rugas que não vira antes no seu rosto, pés de galinha e poros abertos, além dos cravos e espinhas. Percebeu acima da testa uma entrada no seu couro cabeludo muito maior do que achava que era. E os cabelos grisalhos então? Já devia ter mais de 10 fios! A coisa estava feia. Arrancou sua roupa e se olhou no espelho. Estava gordo e mole. Tudo era só flacidez e pelancas. Não tinha nem a metade da beleza que costumava ter antigamente.
Naquela noite, José não dormiu direito. Ficou pensando nas coisas que a megera lhe falara. Parecia que seu rosto se repuxava durante a noite, e ele não conseguia dormir se imaginando carcomido por dentro.
Ele acordou na outra manhã decidido em não pensar em mais nada, a não ser na construção de uma pessoa melhor. qSe inscreveu em uma academia, contratou um personal trainer, foi até um dermatologista e a uma nutricionista. Começou um programa de natação, comia certinho e fazia seus treinos até rasgar e definir todos seus músculos. Tratou seu cabelo com cremes especiais, a pele do seu rosto e pescoço com susbtâncias que melhoravam o colágeno e o liberavam dos radicais livres. Fez limpeza completa de pele em um spa muito bem recomendado pelos profissionais da área. Em seis meses ele se olhou no espelho e sorriu, vendo um corpo perfeito, com um rosto quase sem marcas de idades e um cabelo ondulando ao vento. Ficara muito contente com o resultado de todo seu esforço e boa disposição em mudar para melhor. Então disse em voz alta, para si mesmo, com a intenção de que as paredes do seu apartamento testemunhassem o nascimento do mais novo homem:
-Agora eu, José Pereira de Aragão, recuperei a minha auto-estima!
José então começou a passear na frente do seu prédio em horários distintos. Ele queria de alguma forma encontrar Maria, a sua Nêmesis que o deixara tão aflito durante tanto tempo, e poder mostrá-la pessoalmente como ele, José, foi capaz de dar a volta por cima.
Um belo dia, após  José tornou a encontrar o zelador João e eles começaram a falar sobre amenidades das páginas do jornal daquele dia, quando ele viu Maria vindo de longe. Ele respirou fundo e estufou o peito, pensando em elogiá-la por sua aparência e saúde. Assim ela não teria outra alternativa, senão dãr o braço a torcer e fazer algum comentário positivo para ele.
Assim que ela cruzou o portão, José disse, teatral:
-Bom dia!
Maria o olhou com um sorriso no rosto, mas com aquele olhar que ele já conhecia de outros carnavaisa aquele mesmo que o assustava tanto. Sem delongas ela cuspiu:
-Bom mesmo. Comprei aquela sua cobertura dos sonhos.
-Como assim, comprou? - Arruinou-se José.
Com um sorriso artificial no rosto, afinal, Maria não era do tipo de pessoa que conseguia fingir uma expressão facial humana por muito tempo, ela se justificou, destilando seu sarcasmo vil:
-Estamos em tempos de crise, então me vendeu baratinho! Boa tarde para vocês.
-Boa tarde, Maria. - chorou José, procurando um buraco para enterrar a própria cabeça.

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