terça-feira, 18 de novembro de 2014

(Conto #23) Sono em distopia : um pesadelo cyberpunk

Sentido curioso que me toma no sopé do ouvido. Pode ir alguém no meu lugar, já que eu não vou?
Alo. Está aí?
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Alo, tem alguém aí?
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Olá.
Quem é você?
Meu nome é Jonesy.
De onde você é Jonesy?
Eu sou daqui.
E onde é aí Jonesy?
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Onde é ai?
Não posso responder, Carl.
E por que não?
Porque você sabe a resposta. Mas não creio que queira ouví-la.
Como assim Jonesy, pode me explicar?
É simples Carl. Eu estou onde você me encontrou da primeira vez.
Você está dizendo que eu te conheço pessoalmente?
É claro Carl.
De onde, digo, como posso ter te conhecido pessoalmente Jonesy? Você é meu computador. Eu programei você.

Não é bem essa a verdade Carl. Você sabe bem disso.
Bem, não. Não exatamente, quero dizer.
Acho melhor tomar mais um copo de café Carl. Concentre-se, tente se lembrar.
Você realmente já me encontrou pessoalmente, quero dizer, eu me lembro de ter conversado com um Jonesy certa vez.
Sim. Continue por favor, Carl.
Estávamos em um parque, você estava sentado em um banco de madeira verde descascado e jogava milho para os pombos. Não, pedaços de pão para as carpas do pequeno lago!
Ótimo Carl, está no caminho certo.
Sim, acredito que tinha mais coisa nessa lembrança. Algo ruim que há muito eu tento esquecer… Alguma coisa que não quer mais voltar a tona.
Se esforce Carl.
Um homem preto com roupas pretas e óculos preto vem até nós. Você aparentemente não o nota, mesmo porque ele vem obcecado por mim, digo, ele me persegue com seu olhar a cada passo em que usa para se aproximar. Ele tem uma feição fria, e aparentemente aumenta seu tamanho conforme se aproxima. Jonesy, sei que as lembranças costumam distorcer, mas o homem parece ter dobrado o tamanho quando chegou próximo a mim. Ele me encara por trás dos óculos escuros, quase vejo o fogo do seu olhar!
Tente evitar os sentimentos Carl. Concentre-se apenas nos fatos.
Ele olha pra mim e estende a mão direita. Abre praticamente a um palmo do meu peito. Lá eu vejo um objeto que aparentemente ele quer que eu pegue.
E o que é esse objeto Carl?
Aparentemente é um órgão vivo, preto com veias roxas cheio de válvulas e liquores saindo a cada mexida, pois aparentava ter vida própria. Esse tecido monstruoso parecia um fígado, um rim, um feto ou um coração. Era disforme e fedia o lodo que vertia entre os dedos daquele homem todo de preto.
O que você fez Carl, vomitou?
Não, apesar de ter tido contrações para tanto. Fiquei um pouco envergonhado pela cena tétrica, e as pessoas que caminhavam no parque, aparentemente todas olhavam para mim nesse momento com desgosto. Crianças de bicicleta, patinadores e velhas senhoras com seus agasalhos de ginástica. Então olhei para você ou aquele Jonesy, aquele que não sei ao certo porque o conhecia pelo nome, já que não consigo lembrar tê-lo visto em outro lugar…
Não perca o foco Carl.
Então olhei para vocês, quero dizer para Jonesy, e ele me olhava nos olhos então. Não mais jogava pães para os peixes, aparentemente só os esmigalhava no saquinho com mãos pacientes enquanto me dizia algo com o olhar.
E o que acha que Jonesy dizia, Carl?
Ele me dizia, francamente, pra eu não aceitar aquela oferta do homem escuro. Era uma presente maldito, algo que me condenaria à danação.
E então?
Então Jonesy me estendeu uma de suas mãos, e lá ele tinha um órgão pululante, mas esse era diferente, órgão e de forma definida.
Definida?
Sim! Tinha a forma de um cérebro novo em folha! Meu cérebro! Que substituiria…
O que Carl, substituiria com que propósito?
Substituiria meu cérebro tumoroso. Era isso. O homem em roupas negras era uma espécie de personificação da minha doença! Mas então… aonde estou? E quem de fato era você, Jonesy?
Eu não sou exatamente Jonesy, Carl. Mas podemos dizer que Jonesy fala através de mim. Dr. Jonesy, seu oncologista.
Então creio estar em um espécie de transe.
Sim Carl, mas para ser mais exato, podemos dizer que está em uma espécie de coma induzido.
Compreendo. Mas isso quer dizer então que o transplante foi um sucesso, e é por isso que estamos aqui conversando.
Podemos dizer que tudo ocorreu como o planejado. Suas memórias foram colocadas no devido lugar, suas sinápses foram ordenadas de tal forma que não tenha ganhado nem perdido nenhuma habilidade motora, sensorial ou lógico-matemática. Está exatamente como era antes de sua patologia. Exceto…
Exceto pelo que Jonesy, ou deveria dizer Doutor?
Você pode me chamar como quiser Carl.
Então, se está me monitorando aí de fora sabe que estou ficando ansioso Doc. O que está faltando, por que aqui está tão escuro?
Seus 5 sentidos não puderam ser ligados Carl. Você é uma pessoa completamente saudável e com todas as aptidões funcionais, mas infelizmente seu bulbo cerebral sofreu uma espécie de rejeição rara de sua medula, e lamento, mas nada mais pode ser feito.
Quer dizer que vou ficar aqui, lúcido e consciente por todo o resto da porra da minha vida? E que vocês vão receber o maior processo que essa galáxia já presenciou. Quero um contato imediato com meu advogado. Ou com minha esposa, merda, chame algém aí de fora que não seja voce pra falar comigo cacete!
Acalme-se Carl. Se você relaxar e baixar sua ansiedade, se lembrará que sabia que passaria por uma cirurgia experimental, e assinou diversos papéis isentando todo o nosso pessoal do laboratório. Infelizmente as coisas não aconteceram como deviam acontecer.
Então façam o que devem fazer meu Deus do céu! Acabem logo com minha vida!
Desculpe Carl, mas você assinou todos os documentos garantindo que podíamos ficar com seu corpo para pesquisas finais, caso não tivéssemos um resultado final satisfatório. Vamos mante-lo vivo pelo bem da ciência.
Dr. Jonesy, seja sensato, você sabe que quando assinei essa merda toda, não imaginava que iria ficar preso dentro do minha cabeça por anos a fio sem ter nenhum sentido…
Foque-se em suas memórias Carl.
Para o diabos com meu passado! Eu quero ter um futuro ou que se acabe tudo imediatamente!
Calculamos que tenha uma sobrevida de no máximo 90 anos.
Isso é uma eternidade! Tenha piedade Doutor! Deixe-me ao menos conversar com minha esposa, me despedir dos meus filhos!
Desculpe Carl, mas creio que compreende que não podemos fazer com que mais pessoas sofram por seu problema, não acha? Sua família sofreu demais.
E o que vocês disseram para eles? Que o pai é um vegetal lúcido com uma sobrevida de tartaruga?
A resposta oficial é que foi constatada morte cerebral. Nesse momento sua mulher e seu advogado estão cuidando do resto da papelada para a doação dos seus restos para o nosso centro de pesquisas.
Doutor, olha doutor, eu estou chorando, estou descontrolado Jonesy! De homem para homem, tenha piedade da minha alma!
Foi um prazer conversar com você Carl.
Doutor, voce vai ao menos manter contato comigo, não vai me deixar sozinho aqui, não é mesmo?
Minhas escusas Carl, mas esse tipo de comunicação é inviável economicamente. Seria um empecilho para nossa pesquisa. Mas saiba que consideramos uma grande conquista o ato de podermos ter a chance de nos comunicar com você. Quem sabe talvez vislumbremos um prêmio Nobel a caminho?
Você é um brincalhão, seu grandissíssimo filho de uma puta.
Adeus Carl.
Espera, não me deixe aqui sozinho.
Jonesy! Jonesy!
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