sexta-feira, 7 de novembro de 2014

(Conto #43) Inusitadas são as coisas neste prédio


   Giorno abre os olhos mais uma vez, após centenas de piscadelas ininterruptas. Queria ele que fosse outro dia, outro lugar, mas não, estava ele ali, em frente ao cadáver do porteiro que ele acabara de matar. Giorno sentiu o cheiro da poça de sangue que se formava na cabeça aberta do homem caído, e então se deu conta que ainda segurava em sua mão direita o pesado bastão que usou para rachar-lhe o crânio.

“Calma, Giorno”, pensou, enquanto procurava um saco plástico para esconder a arma do crime. “Ninguém escutou nada, são quase três horas da manhã, a câmera da porta da frente está quebrada. A qualquer momento você poderá sair silenciosamente e ninguém terá prova alguma contra você.”
Giorno fechou a pequena saleta da portaria usando o pano da manga de sua camisa, para não deixar impressões digitais. Parou por alguns segundos, procurando no silêncio profundo alguma observação anormal. “Nada, além dos grilos por testemunha”, pensou Giorno, e esse pensamento arrancou dele um sorriso nervoso, como se a piada pudesse acalmá-lo da perigosa situação em que se encontrava. Olhou através do jardim, e então para cima, observando meticulosamente cada uma das janelas daquele prédio de oito andares procurando testemunhas oculares. Uma espécie de frenesi tomou conta de seu corpo ao perceber que tudo caminhava conforme o esperado, mesmo que não tivesse planejado nenhuma de suas ações daquela noite.
Então, com a chave do porteiro em mãos, abriu a porta de vidro que dava para o hall e entrou pelo espaço escuro. Sabia que sobre sua cabeça havia outra câmera, mas também que ela nada conseguiria filmar com a luz apagada, coisa normal naquela hora da noite devido a ordem da síndica irresponsável, que pensava que deixando as luzes dos corredores desligadas na madrugada poderia economizar um pouco na conta de luz do condomínio. Cruzou em passos largos até chegar a porta de incêndio no canto esquerdo que dava para a escadaria, aberta facilmente com um empurar do seu cotovelo. Subiu então nas pontas dos pés, sabendo que sapatos sociais poderia gerar estalos incômodos que ecoariam até o topo do edifício. Seus movimentos eram tão calmos e meticulosos que nem mesmo o sensor de presença que acionaria as luzes da subida foram despertados. Seu coração pulsava a cada passo, mais de excitação do que estava prestes a fazer do que do medo de ser pego. Após uma eternidade de quase quinze minutos, parou na porta corta-fogo que, segundo seus cálculos, o levaria até o corredor do andar da Srta. Cera. 
   
O silêncio era gritante em seus ouvidos, e ele estancou a respiração e fechou os olhos para celebrar esse momento ritual. Seu coração batia forte em seu peito, e então ele começou a fazer uma série de respirações profundas até sentir-se novamente sob total controle dos seus atos. Giorno pegou um lenço no bolso de seu paletó e utilizou-o para abrir a porta de aço lenta e cautelosamente, de forma que não fizesse um ruído sequer. Assim que terminou de abrí-la, o sensor de presença do corredor que dava para os apartamentos acendeu a luz, e ele então pôde ver o vapor de sua respiração seguindo seu caminho sobre o ambiente frio. Ficou parado alguns segundos até que a luz se apaga-se e então caminhou no escuro pleno até o final do corredor, onde conseguiu com as palmas de suas mãos sentir a porta de madeira envernizada do apartamento que procurava. Não conseguia acreditar que estava a tão poucos passos de realizar aquele seu desejo tão pulsante, tão feroz que o consumia de forma avassaladora.

Tateou o bolso esquerdo do seu paletó e então sentiu nas mãos o molho de chaves que retirara do quadro do porteiro com todas as que abriam portas daquele andar. Então praguejou silenciosamente “maldição, não tenho como ler  no escuro o número da chave que serve para essa porta. Deveria ter separado a certa lá embaixo. Agora vou ser obrigado a testar uma a uma. Sorte a minha é que serão poucas as tentativas”. E então ele fechou os olhos e tentando sentir o serrilhado de cada chave entre seus dedos, tentando adivinhar qual seria a correta. Escolheu aleatoriamente uma delas e pensou, convicto “É essa, vou tentar já!”. Segurou a chave firme entre o polegar e o indicador de sua mão e apertou as outras chaves com a palma encurvada de sorte que não fizessem barulho na hora em que virasse o chaveiro sobre a fechadura. Ela entrou com facilidade, mas ao forçar sentiu que ela não girava. “Será que é a chave errada ou só está engripada? Forçou mais um pouco, fazendo um pequeno barulho que o deixou apreensivo. Parou tudo e tentou escutar através da porta. “Nenhum sinal de gente acordada. Bom.”. Então Giorno com cuidado selecionou a chave seguinte e inseriu-a na fechadura com a mesma facilidade que a anterior, mas da mesma forma não girava sobre seu eixo. 
Ele começou a ficar um tanto nervoso e acabou por se descuidar, forçando um pouco mais ruidosamente dessa vez. Mas daí seu instinto retornou-lhe a noção do perigo e ele parou mais uma vez, tentando escutar algum ruído. Da porta da direita que dava para o apartamento contíguo ao que tentava abrir escutou uma respiração pesada, algo como se fosse uma espécie de ronco, e prevenindo um deslize qualquer acautelou-se respirando fundo para se concentrar. Quando foi tatear o molho para tentar pegar a próxima chave da sequência, Giorno acabou deixando que ele escorregasse de sua mão e caísse ruidosamente no chão, e ele sem querer deixou escapar um palavrão: “merda!”. Abaixou-se e pegou o chaveiro, quando escutou atrás da porta que tentava abrir: “tem alguém aí?”

Giorno sentiu o suor gelar por sobre sua nuca, e suas mãos começaram a tremer. Levantou-se

vagarosamente e tentou não entrar em pânico. Então escutou novamente a voz feminina através da porta, “Anselmo, é você? Esqueceu de novo a chave do seu apartamento? Porque está escuro aí fora, o sensor queimou de novo? Espere um pouquinho!”. Giorno escutou uma chave girando naquela fechadura e a porta se abriu, revelando uma mulher alta e esguia, com longos cabelos escuros caindo sobre um roupão de cetim cor de ouro envelhecido. Era a Srta. Cera.

Giorno agiu o mais rápido que pôde. Com a mão esquerda tapou a boca da mulher e com a outra empurrou-lhe violentamente apartamento adentro, tendo o cuidado de fechar a porta com o pé direito. Cera estava totalmente fora de si, e não teve tempo sequer de reagir. O homem conduziu-a até seu quarto e então jogou-a violentamente na cama. Com o peso de seu corpo ele a imobilizou e então arrancou a fronha do travesseiro que estava mais a mão e enfio o máximo de pano que conseguiu na boca da mulher. Ela ainda estava tentando entender o que acontecia quando Giorno arrancou-lhe o roupão, revelando uma camisola branca transparente sem mais nada por baixo. Ao ver seus negros pêlos pubianos logo abaixo do tecido, Giorno ficou excitado e sentiu um tremor de êxtase ao reparar de soslaio o seu reflexo no espelho da pentedeira: um elegante homem de terno risca de giz com o cabelo fixado no mais perfeito alinhamento.
Ele se fixou em sua imagem como se fosse uma espécie de espectador da cena, vendo ele próprio abrindo a braguilha de sua calça e então subindo a camisola até acima dos peitos rijos da Srta Cera. Aquele corpo branco contrastava de tal forma com seus cabelos negros, seus grandes olhos escuros, seus longos cílios, que ele teve que tomar cuidado para não entrar em êxtase antes do ato premeditado. Pensou consigo mesmo: quem vê essa mulher toda arrumada em seu tailleur de trabalho, toda maquiada em formal profissionalismo, não sabe o que ela esconde na simplicidade íntima do seu lar.

Giorno mal se conteve ao beijar sofregamente a boca de Cera, seus ombros, e então sugar com voracidade seu mamilo direito. Cera tentava se libertar de todas as maneiras possíveis, mas o homem era forte demais para suas frágeis tentativas de luta. Giorno então abriu as pernas da mulher com os seus joelhos e tentou forçar a entrada em sua vagina. Ela se debateu até esgotar suas forças, e quando sentiu que o homem conseguiu realizar seu intento em penetrá-la, deixou de resistir até que ele terminasse seu ato sujo. Seu ódio deu lugar à um vazio interior, e ela pareceu apagar-se em um estado catatônico, paralizada em sua frustração de não ter mais como reagir. 
Então, como que regida por um instinto animal, ela começou a mexer-se junto com ele de forma ritmada, como se a busca de seu próprio prazer fosse uma forma de afrontar a brutalidade daquele homem que usurpava sua liberdade. Sentiu então seu clitóris entumescido e com uma lubrificação que a muito tempo não sentia, e num gesto inesperado para Giorno virou ambos os corpos de tal forma que ela ficasse em cima, controlando a cópula ela mesma. Cavalgando como uma amazona, ela esfregou-se com tanto vigor sobre o membro ereto do invasor, gozando com um grito abafado pelo tecido em sua boca, pouco antes dele ejacular tão potentemente que quase o fizera perder os sentidos.
Ela se deitou ao seu lado, aniquilada por toda aquela ação, e por alguns minutos ambos ficaram parados olhando para o teto, respirando ofegantes com seus corações palpitando. Então fez-se o silêncio, e ambos se encararam, pensando em seus próximos movimentos. Ela fez menção de pular da cama, mas Giorno foi mais rápido e ficou na frente da porta do quarto, impedindo sua passagem. 
    Enquando ela arrancou a fronha de sua boca, aproveitou para sorrateiramente pegar o pesado abajur e arremessar num tiro certo bem no meio de fronte do homem, que cambaleou para trás alguns passos, sentindo o sangue quente escorrer-lhe na face. Então a mulher correu feito uma desesperada tentando chegar até a porta do apartamento, mas foi segurada pelo braço e arremessada com força num movimento de gancho por Giorno. Ela caiu sobre a quina da mesa de centro da sala, quebrando seu pescoço de forma violenta. Giorno escutou o barulho dos ossos da Srta. Cera se partindo e logo após o barulho do vidro da mesa, formando no chão um mosaico de cacos encharcados de escarlate.

Giorno passava a mão em sua cabeça latejante enquanto observava o corpo inerte que antes fora seu objeto do desejo, pensando em como gostaria de poder possuí-la mais uma vez. Estava envolto nesse pensamento hediondo quando escutou a porta se abrir, o que fez com que ele se vira-se num sobressalto.
“Giorno, o que está fazendo? Eu escutei o barulho do seu estardalhaço lá do meu apartamento dois andares acima!”. E então a mulher com um robe rosa e pantufas de pelúcia passou rapidamente por ele e foi em direção da mulher caída, tomando-lhe o pulso.
“Ela está morta. Sorte a sua que o vizinho de porta toma remédio tarja preta para dormir.”
Giorno sentou-se no sofá ainda com a mão na cabeça e então disse:
“Marta, pode ver se encontra um analgésico no banheiro, por gentileza?”.
“É claro, querido.”, disse Marta, pondo-se em pé. Fez menção de ir até o banheiro mas estacou levantando o indicador em atitude pensativa. “Se bem que acho que você não vai precisar.”
Giorno fez uma cara interrogativa que repentinamente tornou-se de espanto ao ver que Marta estava com uma arma na mão apontada pra ele.
“Adeus querido!”, disse Marta, antes de acertar um tiro certeiro em seu olho direito, logo abaixo do seu machucado na testa.
Marta então limpou o revólver com um paninho que trouxera no seu bolso e então cuidadosamente pôs o revolver na mão da Srta Cera, apertando mais uma vez o gatilho dando um tiro a esmo na direção de Giorno.
Então calmamente saiu do apartamento e subiu pela escada de incêndio até o seu andar, preparou um chá na cozinha e deu um telefonema, para depois retornar ao quarto em que estava dormindo com seu velho marido.
“Marta, o que aconteceu? Escutei um barulhão agora. Vem da rua ou é daqui do prédio?”, disse Gervásio, apreensivo.
“Volte a dormir Gervásio, eu já liguei pra polícia, eles se encarregarão do ocorrido.”, disse amavelmente Marta.
“Você é uma síndica muito dedicada, meu amor”, disse Gervásío, dando um beijo de boa-noite na esposa.
Dez minutos se passaram, e o silêncio da noite foi quebrada por uma sirene bem longínqua.
“Gervásio, está acordado querido?”. Disse Marta, coberta até a cabeça com seu edredonzinho cheirando a lavanda.
“Ãh, o que meu amor?”, disse Gervásio meio embriagado de sono.
“Nos livramos do porteiro e da sub-síndica.”, cuspiu Marta.

“Que bom.”, respondeu Gervásio, já envolto no mundo dos sonhos.  

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