Era sábado à tarde, e todos os garotos que considerava meus amigos saíram para alguma festa e não me convidaram. Pus uma roupa bacana e saí de casa rumo a lugar nenhum, despedindo-me da minha mãe sem contar a verdade, afinal de contas não queria deixá-la preocupada.
Dei algumas voltas nos quarteirões próximos, observando outros grupos de garotos que tramavam seus passeios noturnos, tomando a devida precaução de não me deixar ser visto, sobre risco de arrumar confusão, coisa de cidade pequena.
Quando percebi que alguém olhava pra mim, saía de lado, fingindo distrair-me com uma pedra, que chutava por trinta ou quarenta metros, até uma esquina furtiva.
A tarde já caía em noite quando a vi me observando: é algo estranho para um observador por si só ser o observado, mas havia algo além.
A menina trajava farrapos acinzentados e tinha grandes olhos melancólicos que me acompanhavam desde lá sabe-se quando.
Aparentemente evitava minha percepção de um ser observado até aquele momento, quando resolveu revelar-se para mim com sua penetrante fixação. Com braços relaxados e roupas muito gastas, mas não sujas, manteve-se imóvel mesmo quando cheguei a um braço de distância com o punho levantado ameaçando espancá-la pelo atrevimento.
Percebendo que meu blefe fora em vão e desmascarado como um covarde sem condições de nem ao menos enxotar uma menina enxerida, baixei os olhos e ameacei ir embora. Ela então levantou uma das mãos e tocou em meu ombro, dizendo, “Espere, quero lhe mostrar uma coisa!”.
Curioso, seguia por mais ou menos 200 metros ladeira acima até o cemitério da Paz, no topo do morro. Mas não estávamos na rua que dava para o portão principal, mas em uma vicinal onde hoje fica o velório municipal. Ela fez sinal para que eu pulasse o muro, que naquela parte é baixo.
Assustado pelo pedido, mas curioso e incapacitado de fazer feio perante uma menina, pulei a parede de um metro e setenta, não antes de ralar um pouco a barriga. Quando olhei para trás, vi que ela me seguia com aparente tranquilidade, talvez porque já fizesse isso mais vezes. Estranho, pensei, pois era vizinha de um quarteirão do cemitério e não lembro de tê-la visto antes.
Ela me guiou até um túmulo de mármore cheio de fotos antigas e contemporâneas, depois parou em posição de sentido equivalente a quando a vi pela primeira vez. Já era noite, mas as luzes dos postes das ruas próximas iluminavam bem o ambiente.
Ficamos assim não sei quanto tempo, uma sensação de horas, mas creio que não tenha mais que cinco minutos (tanto tempo assim?).
Daí ela me contou que aquele era o túmulo da família dela, caso ela tivesse uma família.
- Meu nome é Nora. Só Nora porque não fui registrada, e ninguém cuidou de mim. Mas está vendo aquela mulher bonita ali? Ao lado daquele gordo de bigode? É a minha mãe. E está vendo aquele moço bonito ali escrito padre na frente do nome? É o meu pai.
-Mas como você sabe?
-Não vou te contar. Mas eu sei.
-Não entendo.
-Não precisa. Basta saber que eles estão todos juntos em algum lugar, minha família, e eu vou morrer como vivi, sozinha. E disse isso com lágrimas nos olhos.
-Desculpa.
-Pelo quê? Não tem que me consolar. Tem que me ajudar.
-Como
-Me ajude a entrar lá. Deitar em um dos espaços, e dormir com eles. Daí fico com a minha família para sempre.
-Você está louca?
Eu olhei bem pra ela, e parecia bem determinada.
-Não.
Ficamos em silêncio. Talvez ela estivesse certa, vi isso num filme uma vez.
-E o que quer que eu faça? Perguntei, empenhado em cooperar.
-Me ajude a abrir o buraco de uma das lápides e me feche lá, mas preciso que me prometa uma coisa...
-O quê?
-Que não me deixará desistir. Mesmo que eu insista. Muito.
-É difícil. Tenho coração mole pra súplicas. (lógico que não falei assim, mas é como me lembro.)
-Eu confio em você. Pode fazer isso por mim?
-Vamos abrir. Disse isso e forcei a portinhola que dava para o vão cheio de lajes preenchidas com cimento.
As mais novas estavam duras, mas as mais baixas soltavam com o cutucão de uma vareta que encontrei caída de uma árvore. Não nos incomodamos em saber qual era a gaveta que de fato guardava sua mãe ou seu pai, afinal estar com a família era o fundamental da nossa missão.
Enquanto me concentrei em retirar metade da parede de tijolos em ruínas revelando um esqueleto com cheiro característico tumular, Nora apareceu na abertura com um papelão que ela havia arrastado sei lá de onde com cimento fresco de alguma obra do cemitério. Chamei-a para dentro e mostrei o vão da gaveta que havia aberto com certo orgulho. Ela olhou-me com seus tristes olhos grandes nariz a nariz, e nessa eternidade pude sentir algo estranho que mais velho rotulei de amor. Ela me abraçou e deu um beijo no meu rosto, e eu me virei um pouco envergonhado falando:
- Vamos.
-Sim. Obrigada!
-Rápido, antes que venha alguém!
Ela se enfiou na gaveta, praticamente de conchinha com o irreconhecível habitante funesto daquele espaço.
Comecei então meu trabalho, juntando pouco a pouco os tijolos e os unindo com o cimento que Nora havia arranjado, com os olhos dela sempre me fitando, melancólicos mas satisfeitos, como se esperasse isso há tempos.
Faltando seu busto e cabeça para terminar, ela rompeu o silêncio:
-Você é o meu anjo, sabia?
-Não sou não. E falei com os olhos marejados, gaguejando.
-Por quê?
-Porque se eu fosse seu anjo, te tirava daí e te levava embora.
Novo silêncio, novamente Nora o quebrou:
-Agradeço por compreender.
Fiz sim com a cabeça, e continuei com a obra. As horas foram se passando e os tijolos foram novamente empilhados. Faltava só cobrir sua cabeça.
Foi então que tive que provar meu heroísmo e comprometimento, frente ao perigo.
Nora começou a entrar em desespero, e sentir claustrofobia. Começou a respirar rápido e gemeu baixinho, desesperada:
-Por favor, para, me tira daqui, eu quero sair, eu não quero mais.
Fiquei impassível, escondendo uma lágrima do olho.
Ela começou então a se debater e gritar, atrapalhando meu trabalho e ameaçando acordar toda a vizinhança.
Repentinamente, escutei passos ao longe lá fora, e vi o rastro de uma lanterna que vinha de longe, mas podia chegar antes do serviço acabar. Nora escutou o som de pessoas se aproximando do lado externo e gritou:
-Aqui, aqui, socorro, ele quer me matar!
Num relance de agilidade, a adrenalina fez com que eu pensasse rápido e, segurando um tijolo com a mão direita, desferi-lhe dois ou três golpes em sua cabeça, deixando-a inconsciente.
Minutos depois, o coveiro passou através da ruazinha do túmulo que nos encontrávamos, confuso por não achar a origem dos barulhos que o acordara. Pouco depois, foi embora.
Em quinze minutos, terminei a última fenda que separava Nora e sua família do mundo externo. Linda, não pude ver seus olhos uma última vez graças ao sangue empapado que coagulara em sua face, fazendo uma máscara mortuária com seu cabelo negro.
Beijei minha mão e toquei sua testa, para depois fechar o último tijolo, com um nó na garganta.
Os primeiros raios de sol da manhã despontavam quando fechei a portinhola do túmulo, cansado, mas com senso de dever cumprido. Não sei onde a família de Nora se encontra agora, mas com certeza ela está com eles.
-o-
Às vezes sonho com Nora, e fantasio seu espírito vindo até mim a noite agradecer por minha ajuda. Outras vezes tenho alguns pesadelos malucos, sugerindo que ela jamais quis de fato ser enterrada viva. Mas eu sei que isso é bobagem, porque eu sei como é a solidão, e sei como ela castiga e faz doer por dentro. Às vezes penso que seria bom se eu tivesse alguma mão amiga que poderia me amparar como amparei Nora.
Mas, ao que tudo indica, eu não tenho amigos. Nora era minha única amiga. Então, penso eu, no final, eu fiquei... feliz. Afinal, felicidade se compartilha com quem se ama, e eu a compartilhei cada momento daquela noite com Nora.